O Riso, o Disfarce e o Narciso entram num bar

roberto gamito
3 min readOct 5, 2019
Photo by Nicolas D. on Unsplash

Ao sobrevoarmos algumas ideias de Bergson sobre o riso, não seria disparatado meditar que a comédia é algo que tece um comentário especial sobre um disfarce. Nem todos os comentários acerca dos disfarces se inserem na esfera da comédia. Os comentários há-os de todos os calibres e gostos, todavia a comédia, essa maldita, ora amiga do rei, ora amiga da guilhotina, ora surrealista, ora oulipiana, aventura-se mancamente de molde a lançar a mão sobre (e provavelmente sob, se esse for o desígnio do autor da mão) o vestido para que, cumprida a insólita expedição, avente o que há para lá do disfarce. Ao encimar o palco com o seu número, o comediante contar-nos-á a história do seu envolvimento com a carne. Com o passar dos séculos, o disfarce subtilizou-se, procurando alcunhas, outros nomes.
O disfarce, foi ele próprio, à procura de disfarces. Aliás, são inumeráveis os disfarces que cumulam o corpo nu, o rosto precário. Quiçá até possamos dizer que, ao complexificar o disfarce, o corpo nu foi-nos vedado.

Gastamos energias sem fim no sentido de vender o disfarce como algo genuíno, algo semelhante ao nu. Não seria descabido supormos que, escondido sobre as mil e uma vestes, jaz um palhaço enfermiço às escuras: o homem contemporâneo. Se insistirmos nesta ideia, o comediante é um Cláudio Ramos depurado ou um símile tosco e baratucho de um juiz que se contenta a comentar farpelas, literais ou simbólicas, atirando, aqui e ali, uma mão marota em direcção às carnes opulentas. Dizer somente isto não é nada. A senda que a mão escolhe a fim de alcançar a carne e quem sabe o osso é o que diferencia o amador do artista. O prelúdio idem. O engodo. Nem todos os engodos atraem peixe graúdo. Aliás, só o prelúdio, ao esfalfar-se em pompas, transfigura-se em comédia. Se nos conseguirmos distanciar suficientemente, a burocracia metamorfoseia-se em comédia e devolve-nos, com uma luz que raramente nos favorece, um aspecto interessante sobre a nossa condição. O lado patético de estar vivo. Das nossas fúrias, das nossas ideias. Cada uma destas coisas merecia um aprofundamento cuidado. Contudo vamos atalhar para o que nos interessa. Se isto, a vida, a arte, a comédia, é sempre a mesma coisa, e só não o é verdadeiramente porque a cada ciclo cumprido sucede um ritual de passagem do grosseiro a um estágio mais subtil, deveríamos ser capazes de opinar sobre a fórmula disto tudo. Qual é a relação actual do homem com o disfarce? O pouco que mudou entretanto foi suficiente para mudar as regras do jogo: eis a questão.

Acontece que o mundo contemporâneo baseia-se num sistema de reputações. A reputação é aquilo que nós, reis em miniatura, ou, se preferirem, humildes fantoches, defendemos a todo custo. O parecer, o disfarce, ganhou um estatuto tremendo e não pode ser contestado. No limite, o parecer é tudo aquilo que somos. Torramos o nosso celeiro de calorias em manter de pé o circo das aparências. O medo que temos do ridículo, o medo de cair do pedestal da vida imaginada, isto é, a nossa melhor imagem, tolda-nos o juízo. Daí a tensão em crescendo entre a pandilha do politicamente correcto, esses narcisos tardios saídos da cloaca deste século cansado, um século de sobras, e a comédia que, tendo o papel de apoucar o disfarce, a reputação, se tornou o seu maior rival. Como sobreviverá a comédia se os comentários aos disfarces, que se apelidam de genuínos e quejandos, forem proibidos? Não será já a comédia sobre a comédia, tão popular estes dias, uma prova do seu definhamento, um ultimo suspiro antes da morte?

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Written by roberto gamito

A tensão da narrativa aumentou…e o narrador morreu electrocutado. @robertogamito

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