necromante domingueiro
Exasperação de um talento afónico
mãos nos espelhos tentando
sufocar o reflexo perturbador
os versos incendiar-vos-ão as línguas rombas
o alcatrão a grande ardósia
onde a eficácia escreve as suas lições a sangue
corpos desencarcerados de vidas labirínticas
híbridos de chapa e carne e nenhuma música
hieróglifos pintados por goelas bem abertas
prossegue o labor da morte
nas olheiras do tempo
a boca memorizava a hierarquia das musas
clareiras mutantes onde o fogo e luz se revezam
o coração saído das áscuas
nas mãos em concha
simulando a ampulheta
a superfluidez de um rosto apagado
autor da tragédia ou autor da comédia?
desde o suicídio de X.
que não penso noutra coisa
que não o amor.
os cérebros abrem-se como flores
imaginam a sua própria primavera
anestesia, eco, ego, holofotes
o templo do deus ausente
onde as mãos, feitas Tifeu, desembocam
furiosamente.
salta-nos do olhar cansado
o nome da ex-musa
ontem cifrado
a rota dos declínios
ocultado pelo sorriso
preso por arames.
dentro do cérebro, um grande polvo obnubilando o pensamento.
segundo reza o mito, o futuro assustou-o.
bêbedos hospedam-se em esplanadas
e fitam mulheres de outros séculos.
curioso, cheira aqui a gasolina.
sorrio estimulado pela profecia.
espevito para as possibilidades das labaredas.
o discurso prolixo
acometido pela elipse
da vertigem
eis o que não dizem as legendas dos quadros:
desviei o olhar deste século
dessa arena onde bárbaros se confundem com santos
inventei portas onde os demais viam becos.
os loucos entoando, por sorte, um fragmento de Finnegans Wake
a agonia dos sítios que repelem o lucro desembestado.
ninguém vos passa a perna, ó contemporâneos!
a depressão invadia-o com um oceano de morcegos.
o corpo dado como perdido
nas entrelinhas pelo ciclope
tantas horas inúteis a cavalo nos meus dedos desgovernados
mongol caseiro incendiando cidades invisíveis
Marco Polo às cabeçadas numa câmara anecoica
são estas as palavras
ou devemos esperar outras?
será que há tempo
para fazer do ruído mármore?
não terá a nossa morte nenhum peso
além das flores que murcham
na nossa despedida?
os holofotes assediam a sabedoria noite e dia
o aedo caquético é ultrapassado pelo papagaio.
ó necromante domingueiro
ávido de ressuscitar a infância
a colher vida onde outros semearam suicídios
vivo isolado
ainda sem nome
num eremitério
entre dois nadas
a que os historiadores
apodarão século XXI
ou merda nenhuma.
o poeta humilde
na folha o carrossel
põe tudo em movimento
para gáudio das crianças e leitores
mal sabem eles que o inferno
surge à enésima volta
a cobra do Paraíso
Saturno
patrono do Tempo
e a arte não é senão uma gaiola arejada
vidas emaranhadas pela miragem mais à mão.
dêem-nos o futuro. o hoje já deu o que tinha a dar.
a mão esquerda não é nada.
tê-la poética ou não
é igual ao litro.
é a neve da publicidade que sepulta
o país do porvir
engoda-nos maravilhosamente
com a lengalenga da purificação.
a chuva narra o destino do Homem
no telhado das casas mobiladas pela miséria.
num universo contíguo
podíamos ouvir
não sou poeta, sou um indivíduo
com a mão esquerda desocupada.
a morte de Deus legou-me demasiado tempo livre.
procuro terrenos onde possa semear o amor.
o deserto saúda-me com a sua vastidão galopante.

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