Morrer não é um processo isento de inconvenientes

roberto gamito
2 min readOct 4, 2020

--

Photo by Paweł Czerwiński on Unsplash

Digam lá o que disserem
eu não sou um poema, ó refinados patifes
não se afadiguem a desinquietar a arte
não cobicem alturas que não dominam
o alfabeto morre, a folha em branco
sua última palavra, entre uma coisa e outra
uma vida aos pinotes de versão em versão
entretendo acocorados e afónicos
receosos de gritar o que amam
calma, o silêncio não pôde vir
atarefado que está a arrumar os volumes da sabedoria
calma, eu trago o drama para cima da mesa
colectâneas de pássaros em vias de extinção
o busílis mora na decantação da queda
o verbo engessado, parvinho de nascença, imita-nos
chega sem nada e parte sem nada
como se a vida não passasse de um retiro budista.

Já não se sentia com força para enxotar as hienas.

De deixa em deixa improvisada
erigiu-se o cadafalso aperfeiçoado.
O teatro entregue ao incêndio da surpresa
num zafarrancho de mil demónios
ninguém sabia onde acabava a alegria e começava a tristeza.

A morte chegou como das outras vezes — pontual.
Célebre cadáver áspero entregue à bicheza miúda.
De que te vale o marketing agora, pensava o padre
ao ver o gigante postiço caber à larga no caixão.
Olhares de enguiço: e agora?
interrogavam os elementos da turba
os mesmos que pediram a sua cabeça
esse bicho sem cabeça — só olhos,
segundo nota de rodapé amanhã empoeirada
de um tradutor hoje caído em desgraça.

Na véspera da morte, um homem de rasgo
sonhando com o percurso da lâmina.

Morrer não é um processo isento de inconvenientes
disse o homem transformado em bobo.

Na cama, a carta de suicídio ilegível.
A ela acudiram um magote de pessoas
das mais credíveis até às mais trafulhas.
Ninguém sabe qual foi a sua última palavra.

A mulher, cujo passado ignoramos, percorreu todas
as línguas, não descurando sílaba.
Não havia nada a fazer, nenhuma palavra era mágica.
Não há forma de interferir com o labor da morte.

Sou famoso pelo que não sei,
não sou um poema, nasci num século
que trocou o canto pelo ruído.

Adoptamos palavras da língua daqueles que gostaríamos
de imitar. Não estranhem por isso se me ouvirem rugir.

___

Sigam-me nas redes sociais:

Twitter: twitter.com/RobertoGamito

Instagram: www.instagram.com/robertogamito

Facebook: www.facebook.com/robertogamito

Youtube: bit.ly/2LxkfF8

Túnel de Vento (podcast): https://soundcloud.com/tuneldevento

--

--

roberto gamito
roberto gamito

Written by roberto gamito

A tensão da narrativa aumentou…e o narrador morreu electrocutado. @robertogamito

No responses yet