Catálogo de movimentos — Volume 2

roberto gamito
8 min readFeb 15, 2023

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(Como começar a pensar pela própria cabeça? Recorrer a pessoas, estranhas e conhecidas, quartos ou quadros, folhas em branco, árvores e perfumes, penas e guilhotinas: eis algumas hipóteses.)

1.

a escrita não é lâmina que pacifica
os débeis gumes acariciam o pescoço
onde ontem sem alarde escorria sangue.

2.

a tragédia, fértil na minha língua
cara desdobrada em criaturas
graças à parafernália de espelhos
a tua resistência tornada lengalenga.

3.

há formigas desmantelando palavras doces
percorrem caminhos infindos com as sílabas às costas.
o meu discurso é saqueado sem pressa
fico a sós com os meus cadáveres.
Resta-me o dialecto da acidez.

4.

por detrás destas letras
estão os matadouros
de onde escapei.

5.

à meia-noite de um mês que não ficará para a História
alguns de nós sentiram vergonha de existir
o nome tornado pseudónimo
clandestinos na própria biografia
fitaram as mãos vazias de palavras
outros agarraram-se à esperança
com unhas e dentadura
faz-se tarde no poema e a música não nos seduz
não há marcha-atrás no sofrimento
não nos vemos senão como vultos
o silêncio polivalente e solícito
entre a companhia e o matadouro
dão-nos comida à boca
obrigam-nos a uma frouxa e carcomida verticalidade
esta é uma linha metamorfoseada em comboio
debaixo da qual encontraremos a paz
o cadáver luminoso acompanhado de legenda
o manual de instruções para erigir um novo século
o cadáver animado pela vora-
cidade dos vermes
fizeram das tripas coração, aplaudam os últimos segundos
da marioneta, o palco ou a vida come-nos de dentro
para fora enquanto de fora para dentro fica entregue às hienas
que confundem cus ambiciosos com moribundas.
sobressalta-nos a crueldade de um pardal impávido
que voa imune à nossa cruz esférica.
sucumbimos sob o peso do nosso umbigo
seremos números resgatados dos escombros
os últimos representantes da casa de espelhos.

6.

ninguém vai chorar a tua morte
ninguém vai receber o teu legado.
que pecado cometeste para ser quem és
coração calado do bosque incendiado
todos os seres estão mortos:
mas quantos deles permanecem deitados?

entretanto os ecos perseguem-te a desoras
fechas os olhos e desprestigias o inferno
imaginas o matadouro conquistado pelo roseiral

os perfumes ficcionados
vírgulas imprevistas
na respiração aflita.

7.

a rã no tanque
a imaginação e de supetão
o cachalote nadando nele.

8.

na boca um começo
no começo uma vida
na vida a guilhotina

9.

há uma ponte
mas o cavalo
não se fia em metáforas

10.

que dimensão
tem o amor
num poema tão breve?

11.

mão a laborar
argila desconfiada
busto desfeito

12.

esmago mosquitos
contra as folhas
do tratado de paz

13.

escrevo
na companhia
dos dias abortados

14.

sem necessidade de magia
o poema de amor
pôs a mulher a flutuar

15.

quando a depressão
foi exorcizada
a vida já lá não estava

16.

na mesma linha
carrasco e vítima
embalados pela música
o estilo — excessivamente barroco
para o nosso palato
não é bom que haja tanto caldo
não é bom quando o pão não está à altura da fome
não há lugar para mim, porém o mundo é grande
grita alguém aprisionado no coração
do poema; sem paixão, faz o balanço
da cadeia de episódios onde a tragédia emendou a vida,
a desfiguração, amor, o fracasso,
o desfile de falsos ídolos, sucessão
de templos onde nos ajoelhámos
e atirados como bolas indefesas
entre o delírio e o tédio
aprendemos a cólera sempre à frente do seu tempo.

Não há maior algoz que o homem educado.
A vossa simpatia é-me cada vez mais indigesta.

17.

quando vir a luz vou perguntar-lhe
o que é uma guilhotina emplumada
e no mesmo passo, sem necessidade
de recorrer a danças milagrosas
hei-de regressar a casa sem cabeça
apadrinhado pelo prefácio da morte

em seu lugar o coração canoro
diante do espelho um vulto decapitado
a dor de uma cabeça fantasma
o convite para ingressar no século
finalmente um homem completo

e porque me põem a luz ao rés deste quadro
se a intenção nunca foi ler a sua legenda

vou sabendo pouco a pouco
o travo que se acoita atrás da ficção
até rasurar em mim
a definição de amor.

18.

Se te amava era sem as palavras certas
entre nós não havia nada
que não estivesse arruinado+
calados, os pensamentos revelavam-se
vândalos saqueando sem mestria o interior
a carcaça oca e sem nexo.
o animal posto vivo onde
não há depois nem antes
o gigante encaixotado
dobrado no verso
no olhar
o descontentamento
de uma geração
aos Domingos recorrem à memória
passeiam as ideias pelo que sobrou das mulheres
eis os homens sós e aflitos.

19.

És aquela cujo olhar roubou as minhas deixas
cego no pântano, actor de segunda no filme escoante
protege-me dos necrófagos apressados
com o perfume da paixão, exorciza as tendências de suicídio
freguesas habituais da minha mente arruinada
estava cego para o depois e iluminaste-me
és aquela que laripiou as minhas braçadas sem nexo
de molde a reorganizá-las em salvação
as tuas palavras doces formam catedrais no meu coração.
Avança, alimenta-te do meu olhar apaixonado.

20.

vocês sabem que as cabeças medonhas
enaltecidas pelo medo ululante
não são bem-vindas no sítio delas
soa a profecia compacta a guilhotina
cantante, ai meus Deus, outra queda
a água dá lugar ao sangue
o homem à noite
em suma, o agora dá lugar ao depois.
E de seguida, tudo se repete noutra língua.
Essa altura, dirá outro, escrevi-a
com mãos de algoz vertical
não há homem que não mereça a lâmina
vozeia o antigo puritano
têm o vosso futuro nos braços
a vossa mãe nas lágrimas
eu bem podia ser outra coisa
se esticasse os braços até ao próximo século
acanhado locomovo-me humanamente
um dia de cada vez sem proezas dignas
de figurar nas gordas dos jornais cadavéricos
parangonas ávidas de morte
deuses arcaicos traduzidos em tinta preta
o mundo lento, o mundo célere
e nós, homens deslocados, clandestinos em ambos.

21. Agora em maiúsculas.

O Sofrimento fez-nos idênticos às pedras
que abandonam o cume para esmagar
a população alienada do sopé
agendámos nas árvores arcaicas
cerimónias de esmagamento do ego
desembaraçámo-nos do nome e da pose.
Dentro da nossa própria cabeça condenada
conservávamos os cães que nos abocanham
atravessámos o nevoeiro de braços abertos
não fazíamos tenção de agarrar ninguém
todos os gestos eram sobras de danças
perdidas conducentes ao cadafalso.
Éramos irmãos porque sabíamos gemer
na mesma língua resistente, herdeiros
do primeiro grito, cantávamos sem público
divino a inutilidade da jornada
a nossa idade era lida por um cego
que punha os dedos a bailar sem música
em cima das rugas, as quais preludiavam o cadáver.

22.

Quando eu tinha outra idade
faziam-me sonhar sem obstáculos
o futuro ficava a um passo bem medido
de qualquer monumental palácio
acariciava o meu rosto vazio de rugas
e corria sem itinerário nem agenda
à beira da minha infância por desdobrar.
Agarrava o presente como se agarra uma laranja
os anos lentos — dentro deles demasiados dias
o inverno, raso de significados, tão-somente uma estação
o campo, apinhado de perigos, era joeirado
pela alegria nas horas de sol inofensivo
andávamos à volta do nosso nome
trabalhávamos um no outro
como num ritual de ressurreição
trazendo do mundo dos mortos
a verticalidade perdida
dos nossos antepassados
vergados pelos anos
de labuta estéril.

Chamavam-me pelo nome
e eu não acudia —
não era Ninguém.

23.

Deus só era verdade no sangue
cogita o arúspice ao rés do dragão
assassinado por Siegfried
tardias interpretações
vêm aos meus lábios
e à minha fome
cantam os cucos do oriente
chapinhando no lago das sobras
ninho surripiado, ninho renovado
intriga-se com o sabor da luz morta na sua língua
no interior dele grassa com pompas de explosão
uma primavera sem folhas de tília
costas invulneráveis às garras do amor
vê surgir o inferno à tona do seu nome.
qual será a próxima morada do calcanhar de Aquiles?
a cabeça respira
debaixo dos escombros
da biografia ficcionada.

24.

Era a festividade do vermelho
amor, vida, morte e futuro
tudo pulsava no leito dessa cor
vi os lábios a fugir para a lâmina
graças ao fogo, do inofensivo
ao mortal uma série de formas
cortes progressivamente mais profundos
deuses crescentemente mais sedentos
a luz ao longe afónica sem sequazes+
Passeamos entre os restos das alturas
visitamos os gigantes poeirentos turisticamente
íamos ao inferno com a certeza de regressar.
O coração entre a vertigem e o esquecimento
a tua língua todas as línguas
o teu corpo todos os fogos.

25. Regresso à Província das Minúsculas.

o palerma reconfina-se na língua douta
bambochata periódica, caricatura lacónica
o afónico fabrica o fado febril com a água
a dar-lhe pelo pescoço — daqui para cima lâmina
o naufrágio grassa em todos os lares
aos afogados o mar vindimado pelo capital
aos poetas o amanhã póstumo
às hienas os cadáveres com carbúnculo
aos deuses a morgue hospitaleira da razão
não incluo putas e demais caídos
o templo de Ísis encerrado pela tempestade
hoje palco de mentiras faraónicas
incita amputações e empalma metáforas
a missa regateia acocorados, a redenção foi abolida
a escoada piroclástica engessou sábios e néscios
as destrambelhadas intermitências da epopeia sazonal
o homem, o Ninguém, agarrado ao Polifemo do baixo ventre
ó frutos podres tornados maduros por engenharia reversa
ó prosa pançuda levada em ombros por ecléticos papagaios
ó bifurcação dogmática, nem quieto nem veloz
o velho sai da reforma e torna-se homem-estátua
segundo ele, não conseguia estar parado;
riam-se agora amanhã pode ser proibido.

engulo matilhas inteiras
começa a busca pelo nome
acoitado debaixo da língua.

26.

a lâmina sempre à frente do seu tempo.
não há gume mais afiado que uma carta
hábil em cortar as pernas ao homem
uma dívida absurda que nem dele é
caiu-lhe ao colo e subitamente o peso do mundo
mato-me ou vou para a rua ensaiar coreografias
de pedinte, desgraçado, de homem sem qualidades
questiona-se a personagem desta comédia.
lá fora, à distância, na tranquilidade das alturas,
as musas cochicham entre elas numa língua
da qual nos chegam tão-somente fragmentos
enquanto digiro o pão que o Diabo amassou
componho sem futuro a habitar-me o olhar
a eternidade breve que me coube, a mão
tomba sem asas na folha, luz ferida
trauteando com emendas o seu grito
endurecem lábios e coração
a verticalidade ferida, a paciência
de pôr os animais e os punhais em poesia
sem que daí resulte, por agora, o meu suicídio.

27.

tão rígidos, tão morbidamente rígidos
os versos empilhados como cadáveres
em cima dos quais o rei assírio
cereja impávida em cima do bolo
inspirado nas árvores mais inocentes
espera alcançar a luz vociferante.
quando a verdade franzina é entoada como hino
o homem transforma-se num papagaio flácido
doravante alimentar-se-á do puré de ideias mastigadas
serei eu um homem destituído de voz,
questiona-se a marioneta afónica
e prossegue o teatrinho da testosterona
entre cercos e jornadas em círculo
um grito desmascarou o século cheio de boas intenções
há quem mergulhe no seu olhar
à cata de cadáveres e civilizações perdidas
uma estátua arruinada disfarçada de místico
isto é uma mina, diz o poeta diante do cadáver de Deus
havemos de pilhar o númen até sermos ricos
rapinemo-lo, concordam poeta e a loucura, até ao osso, até à última palavra.
aqui não há lugar para o canto
a verticalidade sazonal é incapaz
de gerar o passo seguinte,
cegámo-nos com a mão outrora canora
ao longe, o período do fígado arruinado terminava
Prometeu libertou-se da maldição do fogo e inspirado no vento
aprendeu a dançar, a matar corvos e abutres
sem interromper a coreografia da destruição-criação.

28.

cala-se o poeta
todos regressam a casa
sem palavras


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roberto gamito
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Written by roberto gamito

A tensão da narrativa aumentou…e o narrador morreu electrocutado. @robertogamito

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