Beijos, Nada, Deus, Morte — inventário da descrença

roberto gamito
2 min readNov 17, 2017

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Eu sou tudo o que sobra dos meus beijos. Sem descartar nenhum; até aqueles que não passaram do papel e povoam hoje as folhas, a maioria das quais enrodilhadas de fúria. Forneci-lhes, segundo pressinto, uma segunda oportunidade para regressar ao nada. Como que, armado em corrécio, necessitasse, urgentemente, de enceleirar uma vitória de Pirro (mas existem outras?) sobre as palavras de Hesíodo, nas quais “Eros é o mais belo dos deuses imortais”.

Do alto, novos protótipos de abutres dotados de uma subtileza aterradora monitorizam-nos. Estes dias, em que o caos regressa em todo o seu antigo esplendor, asfixiam o mito. Todos os nossos pensamentos, sentimentos sentem dificuldade em sustentar o nada. Ainda que em Bach tenha aprendido, um pouco a contragosto, a celebrar o inevitável, esse fim que nos foi prognosticado exactamente no momento em que ousamos expressar-nos através desse “eu sou” seminal. De lá para cá, a frase de Anaximandro “mais valeria não ser” surge-nos em todo o lado, sob as mais diversas roupagens. A arte está empapada em “mais valeria não ser”. Uma ideia cujo guarda-roupa não cessa de aumentar. O que é o pós-modernismo senão a mais recente formulação da frase de Anaximandro.
Aqui, neste terreno de coordenadas embaciadas, infiltra-se o mal — a novidade nociva — tal como aconteceu ao escriba que, numa desatenção mínima mas decisiva, se dessincronizou com a voz de Deus.

Mas regressemos a Anaximandro. Ser, como fez notar Steiner, releva, inevitavelmente, compromisso. Será que esse desapego colectivo (do qual parece não haver escapatória) pode ser traduzido por uma caminhada assimptótica — um êxodo — até ao não-ser? Será isso que a morte de Deus verdadeiramente nos legou? Será que a nossa maior influência foi Heidegger, ainda que o ignoremos, e que o nosso trabalho neste universo, a ser algum, é, como ele, fazer do “nada” um verbo.

Não estamos, nunca, completamente perdidos.
Contudo a frase que melhor descreve este século veio do nosso profeta Kafka: “A esperança é abundante, mas não é para nós”. Uma frase lúcida que responde para os dois lados a célebre questão de Camus. Resta-nos, talvez, acatar as palavras de Lévinas, de passar de um “ser” para um “ser com”. Ou se nos faltarem as forças para tal, amar as pequenas coisas tal como Darwin amou as orquídeas.

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Written by roberto gamito

A tensão da narrativa aumentou…e o narrador morreu electrocutado. @robertogamito

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