A tarefa húmida
A natureza esventrada pelas panteras em fuga. Dormia à cabeceira do precipício, autor da minha vida, sem que o amanhã me interrompesse o sono. Cresci os borbotões, inspirado nas vidas levadas pelas lâminas. Era polpa cifrada, fruto de sucessivas decantações, entregue de bandeja aos paladares analfabetos. Nunca fui bom em negócios. Troquei o tudo por isto. Andava a inventar pássaros mesclando cantos avulsos. De facto, o que fiz foi imperdoável. Fiz nascer das minhas mãos um monstro canoro. O eremita adiciona metros ao deserto. Como nunca mais falou, o seu caminho era infinito. Como compatibilizar uma frase e outra se eu habito em simultâneo todos os círculos? Estremecem, na inauguração da casa do tesão, os corpos sem precisar de demónios. Possuídos e exorcizados, saem do inferno pelo próprio pé. Pode merecer condenação o que vou dizer, mais a mais neste século onde só já ligamos às frases se estas forem apadrinhadas por números, mas tenho insistido na escrita e insistirei até que alguém se levante do túmulo. Amo essa forma de dar tudo à morte, a ver se Deus se farta de uma vez por todas do sabor da carne humana, e prosseguir sem nada. Não é bem uma ciência exacta traduzir o borbulhar do sangue em poemas. Os avanços, que foram muitos, levaram-nos longe, mas ao mesmo sítio. Concluído o ciclo, andámos séculos e séculos aos círculos. Mas, como certa vez alguém escreveu, a repetição é já outra coisa. Ninguém nos livra de nos tornarmos um tubarão que, ao terminar a enésima ronda em torno da sua presa, decide avançar. Do sexo que faz as vezes do combustível nada há a dizer senão isto:
a tarefa húmida de te fazer falar
para lá da língua.
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